Há vidinhas. Vidas, em pequenino. Em diminuto. Mas também em afectuoso. É sempre de um destes casos que elas ganham o estatuto (e o sufixo).
O sonho de todos nós é ter uma vidinha. Com o trabalhinho, os filhinhos, e o resto. Sim, eu própria dou comigo a fantasiar superficialmente com ter uma vidinha. Com um maridinho. Um tipo carinhoso, educado, atencioso, que goste de bola e de passar camisas a ferro, que volta e meia me traga um brigadeiro porque se lembrou de mim quando voltava do trabalho. Eu ia gostar de cozinhar para ele e apanhar-lhe-ia as meias sujas do chão com uma tolerância prazeirosa. Como, aliás, iria fazer mais tarde com os nossos filhinhos, a Cheila e o Marco. Teríamos uma vida fofinha e preenchida, e um ou dois fins-de-semana por ano íamos passear ao Gerês ou a Braga ou a Proença-a-Nova, os quatro no nosso carrinho familiar. Os miúdos iam gritar e espernear o tempo todo, o maridinho às voltas com o GPS a ouvir o trânsito na TSF e eu, no lugar do morto, ignorando olimpicamente a batalha campal e concentrada a pensar no que iria fazer com os vinte quilos de batata-doce que os tios nos tinham forçado pelo porta-malas adentro.
Também teríamos discussões, claro. Não há vidinha que seja um mar de rosas. Íamos discutir por causa da prestação do T3 na Reboleira, do aumento do prémio do seguro do carro ("oh querido, mas ele é que estava mal estacionado!"), da máquina de lavar que entupiu e já está a causar estragos no parquet do hall, do bacalhau com natas da mãe dele que é sempre melhor que o meu, etc., etc.
Enfim, uma bela vidinha. Faríamos amor três vezes por semana (quatro, no nosso aniversário de casamento e nos anos dele) de maneiras novas e inventivas, sem cigarros no fim mas sempre com um romântico "amo-te" antes de se virar cada um para seu lado.
Uma vidinha a direito.
Até que numa bela tarde de domingo o maridinho se volta e diz: Querida, fiz uma música para ti.
- Oh Zé Eduardo, mas o que é que se passa contigo? De certeza que foi o gaspacho que te caiu mal. Eu vou buscar os sais de frutos -
- Não, querida, isto é mesmo sério. Agora decidi que vou ser músico. E agora vou-te cantar -
- Ai, Zé Eduardo, mas isso da contabilidade era a tua vida!... Tu achas mesmo que -
- Não, querida, eu sempre soube que me faltava alguma coisa. Eu preciso de me exprimir. Já tentei secretamente a fotografia, mas aquilo é muito difícil e diziam-me que tinha falta de gosto, ou o que era, e agora comprei um computador daqueles que vêm nos catálogos da Staples e vou -
E foi este o fim da minha bela vidinha. Fugi e agora tenho um café em São Domingos de Rana. A Cheilinha ajuda-me durante a tarde e o Marco serve imperiais aos fins-de-semana. Sou feliz.
O sonho de todos nós é ter uma vidinha. Com o trabalhinho, os filhinhos, e o resto. Sim, eu própria dou comigo a fantasiar superficialmente com ter uma vidinha. Com um maridinho. Um tipo carinhoso, educado, atencioso, que goste de bola e de passar camisas a ferro, que volta e meia me traga um brigadeiro porque se lembrou de mim quando voltava do trabalho. Eu ia gostar de cozinhar para ele e apanhar-lhe-ia as meias sujas do chão com uma tolerância prazeirosa. Como, aliás, iria fazer mais tarde com os nossos filhinhos, a Cheila e o Marco. Teríamos uma vida fofinha e preenchida, e um ou dois fins-de-semana por ano íamos passear ao Gerês ou a Braga ou a Proença-a-Nova, os quatro no nosso carrinho familiar. Os miúdos iam gritar e espernear o tempo todo, o maridinho às voltas com o GPS a ouvir o trânsito na TSF e eu, no lugar do morto, ignorando olimpicamente a batalha campal e concentrada a pensar no que iria fazer com os vinte quilos de batata-doce que os tios nos tinham forçado pelo porta-malas adentro.
Também teríamos discussões, claro. Não há vidinha que seja um mar de rosas. Íamos discutir por causa da prestação do T3 na Reboleira, do aumento do prémio do seguro do carro ("oh querido, mas ele é que estava mal estacionado!"), da máquina de lavar que entupiu e já está a causar estragos no parquet do hall, do bacalhau com natas da mãe dele que é sempre melhor que o meu, etc., etc.
Enfim, uma bela vidinha. Faríamos amor três vezes por semana (quatro, no nosso aniversário de casamento e nos anos dele) de maneiras novas e inventivas, sem cigarros no fim mas sempre com um romântico "amo-te" antes de se virar cada um para seu lado.
Uma vidinha a direito.
Até que numa bela tarde de domingo o maridinho se volta e diz: Querida, fiz uma música para ti.
- Oh Zé Eduardo, mas o que é que se passa contigo? De certeza que foi o gaspacho que te caiu mal. Eu vou buscar os sais de frutos -
- Não, querida, isto é mesmo sério. Agora decidi que vou ser músico. E agora vou-te cantar -
- Ai, Zé Eduardo, mas isso da contabilidade era a tua vida!... Tu achas mesmo que -
- Não, querida, eu sempre soube que me faltava alguma coisa. Eu preciso de me exprimir. Já tentei secretamente a fotografia, mas aquilo é muito difícil e diziam-me que tinha falta de gosto, ou o que era, e agora comprei um computador daqueles que vêm nos catálogos da Staples e vou -
E foi este o fim da minha bela vidinha. Fugi e agora tenho um café em São Domingos de Rana. A Cheilinha ajuda-me durante a tarde e o Marco serve imperiais aos fins-de-semana. Sou feliz.
5 comentários:
se me deixares fumar sempre no fim caso contigo
:)
bora lá. realmente isto de ser intelectual é muito pobre. desisto. "whatever. fim."
Simplesmente delicioso!
Este post abriu-me sorrisos em cadeia no rosto, qual auto-estrada da boa disposição, desbravando sobrancelhas franzidas de um dia mau.
:)
beijos, minhas flores.
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