É como lhe digo, minha senhora, até faz aflição. Fica para ali, coitada, de olhos arregalados, só lhe falta babar-se, que Deus me perdoe, mas é só o que lhe falta. Depois ri-se, coitadinha, os olhos em alvo, e é quando começa a dizer aquelas coisas que a senhora viu, eu cá não percebo grande coisa, aquilo também acho que nem é prá gente perceber, coitada da garota. No outro dia era não sei o quê que metia uns peixes, olhe, nem sei, depois fica muito quieta com aquele meio-sorriso (que com sua licença lhe dá um ar muito assustador, valha a verdade), fica para ali que até dá ideia de que lhe estão a responder do outro lado, coitadita. E depois ri-se e continua, hoje de manhã era não sei o quê de livros, toda contente a dizer umas palavras lá pelo meio que parecia o meu sobrinho do Luxemburgo quando se enerva, benza-o Deus, olhe eu cá não sei que eu dessas línguas do estrangeiro não percebo mesmo nada. Mas pronto, é como lhe digo; todo o dia ali, à frente daquelas paredes, não quer comer, não quer sair dali, olhe, nada que não seja olhar em frente com aquela expressão desgraçada na cara. E isto é nos dias bons, claro. Às vezes mete-se lhe uma coisa qualquer na cabeça e aí sim, minha senhora, é que é mesmo digno de dó: fica muito quieta, muito quieta, com o ar mais triste que imaginar se possa, e canta muito baixinho. Depois cala-se, e fica ali, só, a ser infeliz. Quer dizer, ao menos já não está com aquele ar de que a parede lhe vai responder, Deus me perdoe, mas aqueles olhos, minha senhora, aqueles olhos, até se me parte o coração.
Oh minha senhora, eu sei lá o que é que ela canta! Com todo o respeito, mas é que é tão baixinho que mal se ouve, eu sei lá, nem sei se não é ela a inventar, oh minha senhora, não sei.
Pois está claro que não, minha senhora, se não come nem se mexe também está claro que não quer dormir, não é? Ah, mas isso eu já lhe apanhei o jeito, minha senhora, descobri-lhe a manha; também nalguma coisa havia de eu poder valer à pobrezinha, por Deus. Quando já toda a casa se foi deitar e ela continua ali com aquele ar de meter dó - e cansada, minha senhora, que toda ela são olheiras e manchas escuras e sei lá eu que mais - eu vou lá muito despachada e antes de ela dar por isso meto-lhe na mãozinha uma esferográfica.
sexta-feira, 7 de maio de 2010
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4 comentários:
:)
E nunca lhe respondem, lá do outro lado da parede? Opá, que maldade... Que Deus me perdoe, mas paredes dessas merecem mas é uma coisa que eu cá sei. Cala-te boca...
:)
E nunca lhe respondem lá do outro lado da parede? Opá, que maldade. Pardes dessas merecem mas é uma coisa que eu cá sei. Cala-te boca...
Merecem o quê, D.?
(case in point)
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